INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende expor ao leitor um pouco da história de uma estrutura musical que foi base de toda a teoria e composição musical até aproximadamente 1800. Esta estrutura chama-se baixo contínuo, teve início no século XVI e só perdeu terreno no final do século XVIII, devido a mudanças de concepções musicais. A história da música é uma sucessão de negações a períodos anteriores, e ao negarem a concepção composicional barroca, no início do classicismo, tanto a teoria do baixo contínuo, como a improvisação, até então muito utilizada, tiveram grande declínio.
A meu ver, o baixo contínuo é uma forma tão ou mais eficiente de se analisar músicas quanto as outras teorias harmônicas. Em certas teorias harmônicas como a harmonia funcional e tradicional, há diversas falhas e incoerências analíticas (como por exemplo, acordes sem fundamental, acordes em segunda inversão com quinta no baixo, etc.). Problemas como estes seriam de fácil resolução numa análise a partir do baixo contínuo, teoria que só lida com os intervalos entre as notas.
Alem disso, a execução do baixo continuo ao teclado é muito importante para regentes, pois além de desenvolver raciocínio musical, percepção, harmonia e contraponto, entre outros, facilita o estudo de partituras (ajuda no aprendizado de leitura de grades, tão essencial para a profissão).
No quinto item do trabalho falarei um pouco sobre técnicas de execução. Este item, como todos deste trabalho, não pretende ser completo, atentando para apenas alguns aspectos numa imensidão de obras e compositores da época.Para um melhor entendimento do trabalho, escrevi um apêndice explicando algumas questões teóricas básicas do baixo contínuo.
DEFINIÇÕES
Primeiramente, antes de apresentar minha definição, gostaria de citar três definições de compositores barrocos que lidaram amplamente com o aprendizado e a técnica do baixo contínuo. É importante que saibamos a opinião de pessoas da época, pois são as que mais tinham contato com a prática musical vigente. Comecemos por Johann Mattheson (1681-1764), organista, cravista, cantor, compositor e escritor musical alemão. Em seu método de baixo contínuo, Grosse Generalbassschule, Mattheson escreve a seguinte definição (1735)[3]:
“(O baixo contínuo é ) Nada mais do que um baixo com figuras que indicam uma harmonia. De acordo com as figuras deverão ser executados ao cravo acordes de quatro notas.”
Passemos agora a definição de Johann David Heinichen (1683-1729), compositor alemão, em sua obra Der Generalbass in der Komposition (1728):
“Nenhum entendedor de música pode negar que o baixo contínuo é um dos mais fundamentais e importantes pontos do conhecimento musical, depois da composição. Aliás, o baixo contínuo muitas vezes mistura-se à composição musical. A execução do baixo contínuo não é nada mais do que uma composição de quatro vozes a partir de um baixo dado.”
Para encerrar, observemos a opinião de Johann Sebastian Bach (1685-1750) sobre o assunto:
“O baixo contínuo é a estrutura fundamental da música e é executada com ambas as mãos, de modo que a mão esquerda toque as notas escritas e a mão direita toque notas consonantes ou dissonantes às outras. Isto deve formar uma harmonia agradável para a glória de Deus e o descanso do espírito.”
Fazendo uma pequena análise das definições, concluímos que a primeira aborda o contínuo de uma maneira mais prática (execução de harmonias a partir de figuras), e não fala nada sobre ornamentação. Já a segunda mostra um aspecto importante da educação musical da época: o baixo contínuo era considerado vital para a aprendizagem musical e principalmente para a composição musical (todos os grandes compositores do período barroco, clássico e até romântico tiveram o baixo contínuo como base de seu aprendizado musical). Bach já tem uma definição ligada à teoria dos afetos, uma visão mais filosófica predominante no período barroco "descansar o espírito".
O baixo contínuo consiste numa linha de baixo que podendo ou não ser figurada evidencia ao executante a harmonia a ser executada (e improvisada).
As três questões mais importantes que dizem respeito à história e à técnica de execução são as seguintes:
1) Por quê, como e onde esta técnica começou?
2) Quais são as harmonias grafadas e como o executante deve interpretá-las?
3) O executante deve tocar sozinho ou acompanhado por outros instrumentos? Se acompanhado, por quais?
A prática do baixo contínuo não envolve apenas questões que concernem à interpretação e ao estilo histórico, mas envolve outros tópicos do conhecimento musical, como orquestração, improvisação, regência, contraponto e harmonia.
O termo baixo contínuo deriva provavelmente do compositor Ludovico Grossi da Viadana (1564-1645)[4], que teve sua obra Cento concerti ecclesiastici ... con il basso contínuo publicada e divulgada por toda a Europa. Viadana escolheu o nome "contínuo" pois a linha fornecida ao acompanhamento não havia sido retirada da linha vocal dos baixos (como era de costume), mas sim era uma linha independente que percorria toda a composições sem interrupções.
ORIGEM
O baixo contínuo tem seu surgimento diretamente ligado ao renascimento e à busca de antigas teorias gregas, nas quais, como afirmavam os teóricos renascentistas, havia a predominância de um solista acompanhado por um instrumento.
A prática de contínuo provavelmente começou a se desenvolver na música secular italiana no início do século XVI, vindo a ecoar na música sacra apenas no final do século.
Dois fatores principais foram essenciais ao surgimento do contínuo:
1) Renascimento da monodia acompanhada[5]
Na idade média e início de renascimento era mais relevante numa composição musical a igualdade entre as vozes e a complexidade contrapontística. Já no renascimento tardio, início do barroco há uma grande valorização da monodia acompanhada, que seria derivada da prática musical grega. O baixo contínuo seria então o acompanhamento desta monodia, inicialmente realizado em instrumentos da família dos alaúdes (chitarrone, teorba) e posteriormente em instrumentos de teclado (cravo, órgão e o regal)[6].
2) Praticidade
A maioria das canções acompanhadas no século XVI vinha com um acompanhamento a quatro vozes, como se todas as vozes do coro estivessem concentradas em um só instrumento. No entanto, a execução nem sempre era possível, pois havia instrumentos acompanhantes de várias naturezas, como instrumentos de cordas dedilhadas (alaúde, chitarrone, cítara, harpa, lira) e de teclado. A execução das quatro vozes também já não era mais importante, pois a importância maior estava na melodia solista. Para que estes problemas fossem solucionados criou-se um sistema mais simples e eficaz para os acompanhamentos.
Além disso, houve um grande aumento na produção musical, de modo que a maioria das cortes possuía um certo número de músicos profissionais e um órgão. O desenvolvimento do contínuo ofereceu uma maior praticidade musical nas seguintes funções:
a) segurar a afinação de coros;
b) substituir instrumentos originalmente especificados pelo compositor para uma performance em outro local (dependendo da acústica de cada local, o que variava muito);
c) substituir cantores por vozes instrumentais; na falta de um cantor sua voz seria executada ao órgão;
d) substituir inteiramente um coro (celebrações menores, impossibilidade da presença do corpo musical).
Havia também um problema em relação aos organistas: possuíam uma linguagem própria de notação (tablatura) de modo que todos os acompanhamentos deveriam ser transcritos para esta linguagem. O baixo contínuo eliminou esta transcrição e poupou os organistas de possuírem várias coleções de transcrições para órgão.
As três primeiras publicações de baixos cifrados, isto é, que possuem cifras explicando diretrizes para o acompanhamento, ocorreram entre outubro de 1600 e fevereiro de 1601, e são as seguintes: Rappresentatione di Anima et di corpo, de Emilio de Cavalieri[7], Euridice, de Giulio Caccini[8], e Euridice, de Jaccopo Peri[9].
No início não havia cifragem dos baixos; a técnica só começou a ser amplamente utilizada a partir de 1610 (mesmo após a popularização da técnica, os compositores continuaram a grafar de uma forma incompleta). Anteriormente possuíamos apenas bemóis e sustenidos[10]. alterando a natureza do acorde. É também provável que a técnica de cifragem seja também de algum ano anterior a 1600, pois foram encontrados alguns manuscritos de Caccini que já possuíam este tipo de notação. Vale ressaltar que os três compositores pertenciam à Camerata Florentina, de modo que o método de cifragem pode ter saído desta academia de eruditos.
DESENVOLVIMENTO
Os tratados de contraponto do século XVI classificam os intervalos como números; destes números vem a cifragem do baixo contínuo, que designam que intervalos devem ser executados a partir da nota do baixo dado.
Nas primeiras peças cifradas há uma grande dificuldade na recomposição das harmonias devido a grande imprecisão na grafia por parte dos compositores e devido a variações de significados de região para região. Canções para contínuo de compositores como Henry Purcell (1659-1695)[11] e Francesco Cavalli (1602-1676)[12] foram arranjadas por eles próprios para vozes e cordas e o resultado revela o quão distante estava a grafia da real intenção harmônica do compositor. Há também confusões entre “6” e “b”, pois são símbolos parecidos e usualmente grafados sem cuidado, de modo que pode haver muita confusão nestes casos[13].
Há dois principais problemas na reconstituição dos baixos do primeiro período:
1) Em algumas situações onde ocorrem determinadas cadências, não houve uma especificação grafada pelo compositor. Certas cadências eram "fórmulas" pré-estabelecidas na época que deveriam ser conhecidas pelo músico executante. Nos trechos musicais em que ocorriam estas fórmulas, os compositores não se preocupavam em notar algo, pois o intérprete já saberia solucionar este problema[14]. Cabe a nós entender quais eram estas fórmulas pré-estabelecidas estudando os tratados da época. Este problema ocorre no Vespro della Beata Vergine, de Cláudio Monteverdi (1567-1643)[15].
2) De acordo com a prática composicional da época, havia também uma busca pela contradição do óbvio, de forma que certas cadências eram alteradas a fim de criar uma quebra maior da homogeneidade na composição. Isto também era comum em Monteverdi.
Outro fato importante é o de que inicialmente os compositores especificavam a oitava em que o intervalo deveria ser executado (por exemplo, havia diferença entre 11 e 4, havia símbolos como 13, 15, etc.). Esta prática caiu em desuso ao longo do tempo.
Em relação aos tratados, podemos dizer que foram decisivos para a difusão da técnica do baixo contínuo por toda a Europa. Um dos tratados que ajudou nesta difusão, principalmente na Alemanha, foi o Syntagma Musicum de Michel Praetorius (1571-1621)[16]. Em seu tratado, Praetorius, que tomara conhecimento de muitos autores italianos, citou um prefácio de B. Strozzi defendendo que o baixo cifrado poderia dar a oportunidade a organistas de executarem motetos de Palestrina[17] de uma forma que o ouvinte não percebesse a utilização de uma notação diferente da tablatura (considerada até então a notação mais perfeita para órgão). Vale lembrar que a substituição da tablatura pelo contínuo teve certa resistência, principalmente na Alemanha, onde perdurou até aproximadamente 1700.
Outro fator importante defendido pelos teóricos é o de que a prática de contínuo poderia empobrecer o conhecimento musical, principalmente dos executantes, que acabariam apenas lendo as cifras sem entender as razões específicas da execução de cada acorde[18].
Além disso, a medida que o tempo passava, os tratados passaram a transmitir não mais apenas a forma de interpretação da harmonia mas diretrizes calculadas para improvisações contrapontísticas coerentes.
Apesar da ampla divulgação, por volta de 1675 o contínuo só estava completamente difundido na Itália; na Alemanha a prática estava apenas em grandes cortes e capelas; já na França e Inglaterra só estava disponível nas capitais. Havia certa resistência na adoção da técnica por parte de alguns compositores como Heinrich Schütz (1585-1672)[19], que só escrevia partes de contínuo a pedido do escritor, e o próprio Michel Praetorius, que apesar de divulgar a técnica em seu tratado, não apreciava escrever partes específicas cifradas.
No final do século XVII estabeleceu-se o grupo instrumental mais comum para a execução do baixo contínuo: um instrumento de teclado (cravo e órgão, o cravo mais ligado a recitativos e o órgão mais ligado à música sacra) acrescido de uma viola da gamba baixo ou um violoncelo. Apesar disso, há exceções, como as sonatas de Arcangelo Corelli (1653-1713)[20], que requisitam o alaúde além do órgão (formação muito recomendada anteriormente por Monteverdi). Nas casas de ópera ainda havia uma grande quantidade de instrumentos, aos quais era delegada a obrigação de acompanhar os cantores de forma mais adequada. Cabia então ao cravista a função de improvisador, enquanto os outros instrumentos seguravam a harmonia.
Já na primeira metade do século XVIII é criado um gênero muito importante, que pode ter tido uma grande contribuição no declínio da técnica do baixo contínuo: a sonata obbligato. O maior exemplo é a série de sonatas compostas por Bach para flauta e cravo, cuja voz superior da parte de cravo era uma voz independente[21]. Esta voz freqüentemente responde e se contrapõe às melodias do solista[22]. Apesar das sonatas obbligato contribuírem no declínio da técnica do contínuo, elas possuem um grande papel na reconstituição da técnica de improvisação da época, de modo que oferecem muitas resoluções de problemas relativos à execução de baixo contínuo na música de Bach[23].
Na primeira metade do século XVIII já podemos observar um declínio da técnica, pelo fato dos compositores entenderem que já não era mais necessário um instrumento de teclado para acompanhar quaisquer formações instrumentais. As obras que ainda utilizavam contínuo possuíam com freqüência a inscrição tasto solo, que significava a exclusão do instrumento de teclado durante determinado texto. Muitas obras permaneciam quase inteiramente em tasto solo.
Ainda há, no entanto, algumas obras para contínuo durante este período e um dos principais compositores desta fase foi Wolfgang Amadeus Mozart[24], que em suas missas escrevia partes de contínuo, na maioria das vezes extremamente complexas. Apesar da complexidade, o contínuo desta época não possuía a mesma função barroca, ficando muitas vezes ocultado por outros instrumentos. Por causa da complexidade (havia muita grafia) o contínuo não tem a mesma conotação improvisativa dos períodos anteriores. Alem disso haviam os concertos para piano nos quais Mozart pedia ao solista (inscrição col basso) que durante os tuttis tocasse com a orquestra, prática comum na época. Era comum também em concertos que o solista comandasse a orquestra, sendo o contínuo uma forma de coordenação da de todos os músicos[25].
INSTRUMENTOS
Neste item abordarei a orquestração do contínuo, isto é, quais foram os instrumentos utilizados ao longo do tempo. Primeiramente falaremos sobre a música sacra, na qual o órgão foi predominante. Este instrumento foi o principal acompanhante das funções litúrgicas da igreja.
Alguns órgãos possuíam também um jogo de cordas de cravo para o organista utilizar durante os recitativos. Em alguns locais não era permitido que se tocasse órgão durante a quaresma. Há também alguns estudos sobre a utilização da harpa nas funções litúrgicas, sobretudo nos países da Península Ibérica[26].
Em relação a registração do órgão, podemos dizer que foi um tema sempre muito controverso, pois compositores e tratadistas da mesma época possuíam idéias e opiniões bem diferentes. Compositores e tratadistas como Francesco Gasparini (1668-1727)[27], Viadana e Praetorius afirmavam que não se deveria acrescentar registros mas sim quantidade de vozes. Já Monteverdi recomenda na execução do Vespro della Beata Vergine que sejam utilizadas três registrações[28] distintas para o órgão:
1) Principale - um principal de 8 pés;
2) Intermediária - Principal 8' 4' 2' ;
3) Organo Pleno - todos os registros de Principal mais as misturas.
Alguns tratadistas, como Johann Mattheson (1681-1764)[29], C. Ph. E. Bach (1714-1788)[30] e Adlung (1763), falam em seus tratados que o organista deve executar toda a voz do baixo na pedaleira, acrescentando 16'. Se não fosse possível a execução na pedaleira devido a dificuldade do trecho, o organista deveria acrescentar um 16' pés no manual. Como se pode observar, é uma visão muito mais tardia e de um caráter mais romântico (quanto mais som, melhor)[31].
No entanto, é preferível que o organista escolha algo mais suave que o principal, como flautas e bordões[32]. Principais são muito sonoros para a execução do contínuo, cuja função é acompanhante e não solista. Para partes solenes o organista deve utilizar registros de 8, 4 e 2 pés, enquanto que para trechos com menor volume deve utilizar apenas 8 pés. A registração depende muito também da acústica da sala (sala mais secas necessitam de mais registros) e do número de instrumentistas e cantores acompanhados pelo órgão: quanto maior, mais registros. Para trechos que possuam partes alternadas de tutti e solo o organista deve preparar dois teclados com registrações distintas: uma mais forte e uma piano.
O cravo é outro instrumento de destaque na instrumentação de contínuo, cravos com alguns registros e dois teclados têm a possibilidade de alteração de dinâmica. O cravo foi amplamente utilizado nas funções de contínuo, principalmente em obras com caráter mais recitativo. Quase todo o repertório de contínuo foi composto para ser executado neste instrumento[33].
Sempre houve uma grande variedade de instrumentos acompanhantes, mas a combinação principal estabilizou-se em um instrumento de teclado e um instrumento de cordas friccionadas numa tessitura grave (gamba baixo ou viloncello).
Um ponto importante a ser ressaltado é a família dos instrumentos de cordas dedilhadas. Instrumentos como alaúde, chitarrone, cítara, harpa, tiveram grande importância no desenvolvimento da técnica. Em certas peças o regente, possuindo três instrumentos executantes de contínuo diferentes como um órgão, um cravo e um chitarrone, pode lidar com a instrumentação diminuindo ou aumentando o volume do acompanhamento (para trechos em piano, apenas o chitarrone; para trechos mais fortes os três instrumentos).
Temos alguns outros instrumentos acompanhantes e executantes de contínuo principalmente na música profana, tais como fagote, sacabuxa e regal.
É necessário também dizer que o piano[34] foi (e é) um costumeiro executante de contínuo, principalmente em apresentações modernas que não têm preocupação em fidelidade à partitura.
Para encerrar este item, gostaria de salientar a importância da orquestração de contínuo nas apresentações de música barroca. Como já disse anteriormente, o regente, desde que possua alguns instrumentistas de contínuo, deve saber lidar com este artifícios para o embelezamento da obra. É de praxe que o órgão seja utilizados para as partes de coro e orquestra, enquanto os recitativos são acompanhados pelo cravo; no entanto, há muitas combinações possíveis que podem ser utilizadas pelos regentes[35].
TEORIA ELEMENTAR DO BAIXO CONTÍNUO
1. Formação dos acordes
Como já defini anteriormente, o baixo contínuo evidencia ao executante a harmonia que deve aparecer no trecho musical. Desta forma o executante montará acordes a partir de uma linha de baixo pré-estabelecida, e estes acordes obedecerão às relações intervalares fornecidas pelas cifras (ou por sua própria omissão). Neste item explicarei o método de formação dos acordes e algumas convenções de época, concernentes às relações intervalares entre as notas.
Primeiramente devo explicar que todo intervalo é designado por números: para uma segunda o número 2, para uma terça o número 3, e assim por diante.
Em seguida, o intérprete deve descartar todos os conceitos de teorias harmônicas vigentes, como a harmonia tradicional e harmonia funcional. Não há no baixo contínuo o conceito de inversão de acordes e acordes sem fundamental (todos os acordes possuem fundamental, que é sem exceções a nota do baixo). Para uma melhor compreensão, observe o exemplo 1.1.
Na harmonia tradicional, este acorde é considerado um acorde de dó com a quinta no baixo; já na harmonia funcional este acorde é considerado uma dominante com quarta e Sexta, se estiver em um ponto cadencial. No baixo contínuo ele é encarado como um acorde em fundamental, com quarta e sexta, um "sol - quatro e seis" ou "seis - quatro".
Passarei então às convenções de época. Devemos observar que muitas do baixo não possuem cifras ou possuem cifras insuficientes.
Exemplo 1.2 (Jean-Baptiste Lully (1632-1687)[36], Ballet des Plaisirs, 1655)
Observe como há muitas notas que não possuem grafia, enquanto outras apenas um sinal ou número. Na tabela a seguir serão explicadas estas convenções de época:
Em relação aos dobramentos, para acordes que não possuam dissonâncias, há a seguinte tabela, que não deve ser seguida com extremo rigor:
2. Execução
O método mais simples e costumeiro de execução do baixo contínuo consiste no continuista executar o baixo com a mão esquerda e montar a harmonia (acordes) com a mão direita. O iniciante deve começar executando cadências simples ao teclado, tais como I-IV-V-I, I-II-V-I, em todas as posições[40] e em todas as tonalidades. Posteriormente deve começar a executar contínuos bem simples, que não possuam muita cifragem. No encadeamento entre acordes vale a antiga regra da menor movimentação possível entre as vozes e, quando possível, da preparação e resolução de dissonâncias. É necessário também que o iniciante já pense no caráter melódico da linha improvisada, que é de extrema importância nesta técnica (É importante que o executante tenha uma base sólida de contraponto).
Posteriormente o estudante deve executar contínuos com maior cifragem, como os de J. S. Bach. Quando superar esta fase, deve então recorrer aos Mozart (missas), que além de possuir cifragem excessiva, trocam várias vezes de clave (Mozart em um trecho da Grande Missa em Dó utiliza quatro claves diferentes: 3 de dó e clave de fá). Um bom treino também são os contínuos não cifrados de Bach, nos quais o continuista deve deduzir a harmonia a partir da melodia e do baixo fornecido[41].
REGÊNCIA DE RECITATIVOS
A regência de recitativos é um estudo à parte na técnica de regência, e deve merecer uma atenção toda especial do regente.
Os recitativos podem ser acompanhados pelo Baixo Contínuo, que tanto pode ser integrado por um instrumento - como o cravo, ou por um conjunto instrumental que pode ser integrado por 1 Cravo e/ou Órgão, 1 Violoncello, 1 Contrabaixo, 1 Fagote, além de vários outros instrumentos harmônicos, tais como Alaúdes e Theorbas. É importante ressaltar que o cravista, organista, o executante de instrumentos harmônicos, saiba resolver, conhecer a arte da interpretação das cifras que compõem o baixo contínuo.
A regência de um recitativo requer por parte do maestro muito domínio da partitura além de muita presença de espírito. É uma técnica precisa de movimentos e qualquer erro pode resultar no fracasso da interpretação do recitativo.
Os recitativos podem ser divididos em três tipos:
1. O recitativo seco
Recitativo da "J.J. Passio secundum Joannem" de Bach.
2. O recitativo mesurado
É um recitativo de acompanhamento mesurado, possuindo ainda assim uma certa flexibilidade de interpretação, com a utilização de passagens em rubato, dependendo estritamente da declamação do texto musical. Encontramos dois tipos de recitativo:
· accompagnato: este tipo de recitativo tem sua explicação na base da palavra, ou seja é um texto mensural recitado, realizado com o acompanhamento instrumental, seja ele o BC ou a orquestra. Em geral este termo esta associado à participação da orquestra como meio de acompanhamento, tendo como característica a utilização de notas longas. O solista, possui neste tipo de recitativo uma linha melódica mais expressiva submetida a uma métrica explícita, mais exata e não tão livre quanto a anterior.
Accompagnato do "Messiah" de Haendel
· Arioso: este tipo de recitativo assemelha-se à Ária e tem como característica, um acompanhamento mais elaborado, no entanto também possui passagens na linha do canto e da orquestra em rubato; diferente da Ária que em sua melodia e acompanhamento são totalmente mensurados, a tempo. Não apresenta grandes dificuldades de regência.
Arioso da "J.J. Passio secundum Joannem" de Bach.
O que Bach e Haendel, denominam de Arioso, também pode ser chamado por Haydn e outros compositores de Cavatina.
Cavatina do oratório "Die Jahreszeiten" de Haydn
3. O recitativo misto
Como a própria designação indica, é um composto dos dois primeiros tipos de recitativo, exigindo do maestro um domínio muito maior da técnica da regência e musical.
Recitativo seco e Arioso do oratório "Die Schöpfung" de Haydn
Em qualquer das hipóteses, é dever do regente conhecer o texto do recitativo de cor, e indicar em sua partitura os sinais necessárias para a perfeita atuação da regência.
Em resumo cabe ao regente nos recitativos:
· Indicar o início do recitativo para o cantor,
· Indicar as entradas do conjunto instrumental designado para a realização do BC.,
· Indicar com clareza, com um movimento preparatório, todas as novas entradas orquestrais.
· Havendo contagem para toda a orquestra, o início de cada compasso de contagem deve ser indicado com um movimento descendente da mão. Isso não quer dizer que o maestro deva indicar a cabeça de cada compasso no momento exato em que ele acontece, mas pode por exemplo, indicar através de quatro gestos descendentes consecutivos, os quatro compassos de espera. Num longo trecho de recitativo seguido de um Accompagnato ou Arioso, o maestro deverá indicar a contagem e chamar a atenção para a orquestra quando faltarem alguns compassos para o término do recitativo, por exemplo cinco compassos antes do final do recitativo, nesse momento o maestro inicia a marcação dos compassos, preparando assim a próxima entrada.
· Ao final da contagem, o maestro mostrar o sinal de atenção, é uma prudência, o que significa dizer que o recitativo está acabando e a partir do próximo sinal a orquestra deverá tocar o que está indicado em sua partitura.
· Quando o conjunto do CB não possuir um responsável pela realização musical - instrumento harmônico com a capacidade de liderança, as entradas do instrumental podem ser dadas pelo maestro, com um sinal de atenção que antecede o movimento descendente do braço para o momento exato do ataque instrumental.
[2] Adicionei ao texto do baixo contínuo, texto sobre os vários tipos de recitativo, além de informações adicionais ao rodapé devidamente anotadas além de dados biográficos de compositores, baseados no livro: CANDÉ, Roland de: Dictionnaire des Musiciens. Paris. Microcosme, 1968.
[3] As definições foram exstraídas do livro de Hermann KELLER: “Thoroughbass Method: with excerpts from the theoretical works...” (vide bibliografia)
[4] Lodovico Grossi da Viadana (1564-1645). Nasceu por volta de 1564 na cidade de Viadana e faleceu em Gualtieri sul Pò a 2 de maio. Irmão franciscano, foi mestre de capella nas catedrais de Mantua e de Fano. Um dos primeiros a utilizar-se do baixo contínuo não cifrado no concerti ecclesiastici, escrito em 1595 e publicado em 1602. É autor de missas; salmos, canzonette; madrigais e 100 “concerti ecclesiastici” com uma a quatro vozes e baixo contínuo.
[5] O termo monodia acompanhada não significa uma única voz acompanhada. Às vezes havia duas ou três vozes. O termo significa que as obras possuíam um caráter mais recitativo.
[6] O regal é um pequeno órgão portátil de um só registro, que na maioria das vezes era de palheta, com um timbre bem anasalado.
[7] Emilio de Cavalieri (1550-1602). Nasceu e faleceu a 11 de março em Roma. Organista e Compositor e humanista italiano. Foi organista no Oratório Del Crocifisso em Roma de 1578 a 1584 e depois tornou-se superintendente das artes na corte de Ferninando I de Médicis em Florença. Foi um dos freqüentadores da camerata de Bardi e foi um dos primeiros a escrever no novo estilo rappresentativo ou recitar cantando imediatamente seguido por Giulio Caccini (1545-1618) e Joccopo Peri (1561-1633). Também foi um dos primeiros a se utilizar do basso contínuo, antes mesmo de Lodovico Grossi da Viadana (1564-1645) se autodenominar o inventor do novo sistema. Sua principal obra a “Rappresentazione di Anima e di Corpo” foi executada em Roma em 1660 no Oratório della Vallicella. Uma espécie de ópera sacra, bem distante da forma oratório clássico de Heinrich Schütz (1585-1672) e Giacomo Carissimi (1605-1674) e seus sucessores, que é estático por definição. Num prefácio muito preciso, ele dá informações e indicações para os movimentos cênicos, instrumentação, a realização do baixo contínuo e ornamentos vocais. Além dessa obra, Cavalieri é autor de pastorais dramáticas; intermedii e madrigais.
[8] Giulio Caccini (1545-1618). Nasceu em Roma e faleceu em Florença. Célebre cantor e compositor, atuou na corte dos Médicis em Florença, além de assíduo freqüentador da camerata de Bardi. Caccini foi um dos poucos compositores que faziam executar suas obras segundo os novos princípios, num estilo monódico dramático, o qual foi chamado de estilo rappresentativo. Esse novo estilo era resumido em “falar cantando”, surgindo daí os primeiros embriões da ópera e do oratório. Caccini envereda rapidamente para um novo caminho, a melodia ornamentada, muito mais lírica que dramática, que deu origem ao bel canto. A parte do melódica do canto importa passagens expressivas ou afetas que foram chamadas de gorge (garganta), técnicas estas explicadas no prefácio de sua coletânea de árias e madrigais editada em 1601, texto esse que se tornou capital para a história do canto. Entre suas obras destacam-se: pastorales; intermezzi; coletânea de árias e madrigais no estilo novo – monodia acompanhada; Nuove Musiche de 1601 – (árias a uma voz e baixo contínuo e madrigais a várias vozes); Fuggilotio Musicale (1613) (a uma e duas vozes com baixo contínuo); Nuove musiche e nuova maniera de scriverle (1614) (a uma voz com baixo contínuo).
[9] Jaccopo Peri (1561-1633). Nasceu em Roma a 20 de agosto e faleceu em Florença a 12 de agosto. Cantor, tornou-se, por indicação de Caccini, músico na corte dos Médicis em Florença, por volta de 1590. escreveu de Intermedii para serem tocados durante as cerimônias de casamento do grão duque Ferdinando I, que ele mesmo cantou, acompanhado por um chitarone. É um dos freqüentadores da camerata de Bardi. Um dos principais objetivos de Peri era ressuscitar o que os humanistas acreditavam encontrar na récita lírica das tragédias dos antigos gregos. Contribuiu para a criação do recitativo moderno fazendo triunfar a monodia acompanhada. Peri contribui com um avanço a esta nova forma musical com sua inigualável qualidade dramática, como se encontra em “Dafne” que foi representada em 1597 no Palazzo Corsi. O sucesso foi tamanho que Henri IV encomendou uma nova obra para ser executada em sua cerimônia de casamento com Marie de Médicis, a qual foi chamada de Eurídice, representada em 1600 no Palazzo Pitti, considerada a primeira ópera que chegou integralmente a nossos dias. Peri foi nomeado diretor de música do grão duque depois promovido a camerlengo generale. Escreveu numerosos Balleti; intermedii; melodramas (também chamadas de pré-óperas) – Dafne e Eurídice; Lê Varie Musiche (para uma a três vozes e baixo contínuo no estilo novo); madrigais; monodias e diversas obras avulsas.
[10] Os bemóis e sustenidos colocados sob a notas dizem respeito a alterações das terças, por isso a alteração da natureza do acorde.
[11] Henry Purcell (1659-1695). Nasceu e faleceu a 21 de novembro, em Londres.
[12] Francesco Cavalli (1602-1676). Nasceu a 14 de fevereiro em Crema na Lombardia e faleceu a 14 de janeiro em Veneza.
[13] Basicamente esta confusão é solucionada na análise da obra. Deve-se observar a coerência musical.
[14] Um exemplo disso é a colocação de bemóis em lugares determinados. O cantor da época aprendia em sua educação musical onde colocar e onde não colocar as alterações; é difícil reconstituir. Mais uma vez o problema deve ser solucionado pela coerência musical. Um exemplo de edição crítica é a obra completa para órgão de J. S. Bach (1685-1750), editadas pela Breitkopf & Härtel. Diversas vezes o editor propõe soluções e modificações, algumas coerentes e várias totalmente incoerentes, como alterações de “ousadias harmônicas” feitas por Bach à execução de um acorde aumentado, colocando um bequadro sobre a nota dissonante. Só que a nota dissonante pertence ao coral que está sendo arranjado, de modo que nunca poderia ser alterada.
[15] Cláudio Monteverdi (1567-1643). Nasceu em maio em Cremona e faleceu a 29 de novembro em Veneza.
[16] Michel Praetorius (1571-1621).Nasceu em Kreuzberg a 15 de fevereiro e faleceu em Wolfenbüttel a 15 de fevereiro. Filho de um pastor luterano, fez seus estudos universitários em Francfort-sur-l’Oder. Depois de iniciar sua atividade como Kapellmeister em Lünebourg, tornou-se organista e Kapellmeister do duque de Brunswick. Sua celebridade deve-se à obra Syntagma musicum, magnífico tratado em quatro volumes, sendo que o quarto ficou inacabado, dos grandes estilos e gêneros musicais praticados após a antiguidade, os instrumentos musicais (um estudo completo sobre todos os recursos dos instrumentos da época), das formas e da prática musical realizada no início do século XVII. É autor de 16 volumes de Muae sioniae, obra composta por 1.244 motetos; 15 volumes de Polyhymnia; 9 volumes de Musa Aonia (obras profanas); Syntagma musicum; e várias peças instrumentais.
[17] Giovanni-Pierluigi da Palestrina (1525-1594). Nasceu em palestrina e faleceu a 2 de fevereiro de 1594.
[18] Neste ponto já vemos aquela questão que perdura por toda a história da música: a questão do intérprete “ignorante”, que não sabe o que está tocando. Esta é uma visão preconceituosa, pois se o intérprete está executando a música de uma forma correta e coerente, está sim compreendendo o que executa. Mesmo na época o pensamento já era falho, pois o intérprete necessitava improvisar também e para isso necessitava de grande conhecimento musical e “ouvido harmônico”.
[19] Heinrich Schütz (1585-1672). Nasceu a 04 de outubro em Köstritz, na Saxe e faleceu a 06 de novembro em Dresde.
[20] Arcangelo Corelli (1653-1713). Nasceu a 17 de fevereiro em Fusignano, Bolonha e faleceu a 8 de janeiro em Roma.
[21] Vale relembrar que a mão direita do cravista era inteiramente escrita; não era contínuo.
[22] Por exemplo, às vezes o solista executava o tema na tônica, o cravo responde na dominante.
[23] O baixo contínuo na música de J. S. Bach é extremamente complexo, de modo que seria necessário um livro para explica-lo de uma forma mais completa.
[24] Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Nasceu a 27 de janeiro em Salzbourg e faleceu a 5 de dezembro em Viena.
[25] Nos próprios concertos para violino, Mozart solicita ao solista que toque com os primeiros violinos durante o tutti.
[26] Conseqüentemente, nos países colonizados por espanhóis e portugueses, caso da América latina e Brasil, deveriam ser utilizadas harpas nas funções litúrgicas. Há estudos nesta área desenvolvidos pelo musicólogo Paulo Castanha, que já mostram que a harpa era muito utilizada, sobretudo nos ensaios e nas funções mais simples.
[27] Francesco Gasparini (1668-1727). Nasceu a 5 de março em Camaiore, Lucca e faleceu a 22 de março em Roma. De 1702 e 1720 foi morar em Veneza. Tornou-se um dos compositores de óperas dos mais populares. Ensinava no L’Ospedale della Piertà. Mais tarde vai para Roma, onde em 1725 é nomeado maestro di cappella em Saint-Jean-de-Latran. É autor de mais de 65 óperas; intermezii; 7 oratórios; missas; salmos; motetos; cantatas de câmara; e um importante tratado de baixo contínuo chamado Armonico pratico al cembalo.
[28] Em relação à registração organística, um registro é um conjunto de tubos com uma altura e timbre determinados, que cobrem toda a extensão do teclado (um tubo para cada nota). Em relação aa numeração dos registros, que diz respeito a altura, 8 pés (ou 8’) significa que o tubo do órgão corresponde a nota mais grave (Do 1) possua um comprimento de 8 pés, ou sejam 2,4 metros. Quando executada, a nota soará na oitava real (por exemplo, o La 3 soará 440 Hz). Se temos um registro de 4’, tudo soará uma oitava acima, pois a primeira nota do teclado terá um tubo correspondente a 4”, ou seja, de 1,2 metros (metade do tamanho de 8’). Como a freqüência é inversamente proporcional ao tamanho dos tubos, teremos no La 3 não mais 440 Hz, mas sim 880 Hz. Já um tubo de 16”, soará uma oitava abaixo e assim por diante.
[29] Johann Mattheson (1681-1764). Nasceu em Hanburgo a 28 de setembro e faleceu em sua cidade natal a 17 de abril. Organista, compositor e teórico. Desde a idade de nove anos tocava órgão e cravo, além de cantar e compor, independentemente de ter levado os seus estudos até à faculdade onde se formou em Direito e Ciências Políticas, e paralelamente desenvolvia a dança e a esgrima. Era um dotado em todas essas atividades. Aos 14 anos debutou como cantor, num papel feminino, na ópera de Hamburgo, onde permanece até 1705, destacando-se nas interpretações de seu amigo George Friedrich Haendel (1685-1759). Aos 18 anos apresenta, nesse mesmo teatro sua primeira ópera. Em 1715 torna-se cantor na catedral de Hamburgo, permanecendo neste posto até 1728, quando foi acometido de surdez, dedicando-se daí para a frente a escrever textos teóricos e críticas. É autor de 8 óperas; 24 oratórios; cantatas; sonatas para flauta ou violino; suítes para cravo; assim como textos literários: “Critica Musica” e “Grundlage einer Ehrenpforte” (ambos livros de críticas) – “Grosse Generalbasschule” e “Der vollkommene Kapellmeister” (ambos livros teóricos).
[30] Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788). Nasceu em Weimar a 8 de março e faleceu em Hamburgo em 15 de dezembro. Quinto filho de J.S. Bach (1685-1750) e Maria Bárbara Bach. É autor de aproximadamente 700 obras que incluem: 2 oratórios; 2 paixões; 1 magnificat; cantatas sacras e profanas; numerosos lieder; sinfonias; 50 concertos; sonatas; trios; numerosas coletâneas, destacando os 6 livros de sonatas; fantasias e rondós para cravo, destinados a músicos amadores; sonatas para 2 cravos com orquestra; obras literárias destaco “Versuch über die wahre art das clavier zu spielen” um dos mais importantes manuais de técnica de execução musical nos instrumentos de teclado publicado em 1759.
[31] Há organistas atualmente que, por falta de conhecimento, insistem nesta tese (e freqüentemente acabam se perdendo na música ou atrasando o coro. É necessário muito estudo e prática para executar todo o contínuo na pedaleira, e o resultado sonoro é duvidoso).
[32] Gedackt, em alemão.
[33] Na verdade os compositores, apesar de ao compor pensarem no cravo como expressão musical, compunham para o chamado Clavier. Esta palavra significava que o trecho poderia ser executado em qualquer instrumento de teclado. A instrumentação não era um dos fatores preponderantes no período barroco.
[34] O piano como instrumento moderno. Vale ressaltar que algumas óperas modernas utilizam-se do piano como instrumento de acompanhamento de recitativos como era feito pelo contínuo no barroco, é o caso de algumas obras de Benjamin Britten (1913-1976) e Gian Carlo Menotti (1911). (anotação minha)
[35] Um exemplo importante é o regente Gabriel Garrido (Argentina), que em suas apresentações de música colonial hispânica utiliza sem preconceitos a harpa paraguaia.
[36] Jean-Baptiste Lully (1632-1687). Nasceu a 28 de novembro em Florença na Itália e faleceu em Paris a 22 de março de 1687. É o fundador de uma era na ópera francesa. Conservou as formas operísticas de Cavalli, muito apreciadas pela corte francesa, mas adapta estas formas ao ritmo e ao espírito da poesia francesa. Em primeiro lugar introduz a abertura muito desenvolvidas e majestosas, seguidas de um andamento allegro em estilo fugato, depois uma reprise abreviada da primeira parte, que recebias o nome de ouverture à la francçaise, obtendo grande sucesso. Esta forma de abertura contribuiu para a eclosão da sinfonia clássica. Ë autor de 32 ballets; 11 comédias-ballets ou pastorais; 14 tragédias líricas; grandes motetos, entre outras obras.
[37] O 4 na maioria das vezes é um tipo de dissonância conhecida no contraponto como retardo.
[38] Há exceções nesta regra.
[39] É importante que o iniciante já possua grande familiaridade com o teclado.
[40] Posições de oitava: a nota do soprano forma uma oitava com o baixo. Na posição de quinta a nota forma um intervalo de quinta com o baixo e assim por diante.
[41] Bach, não cifrava porque possivelmente era o próprio executante dos trechos.
eoricamente, a obra de arte deveria conter tudo o que fosse necessário à sua compreensão, ressuscitar unicamente por suas forças, o universo espiritual onde reside sua mensagem. E o intérprete, dotado de uma sensibilidade delicada, muitas vezes adivinha na obra, além do que ela afirma de maneira evidente, aqueles laços invisíveis e fortes que a ligam ao seu ambiente original. Apesar disso, o conhecimento das circunstâncias em que a obra nasceu, pode em muitos casos nos ajudar a compreendê-la, sem aliás nos obrigar a negar sua natural transcendência, que a eleva além da sua época para acomodá-la à todas as épocas.
Entretanto, devemos sublinhar o papel que desempenham os conhecimentos históricos na compreensão e na interpretação da obra e não nos enganarmos sobre a exata importância desse papel. O conhecimento histórico é saber, mas a compreensão ou a interpretação é julgamento estético, imediatismo de uma reação emocional. Portanto o saber deveria se transformar em julgamento e emoção estéticos. Seria possível?
Se não há limites para o saber histórico, há — e bem estreitos —para a sensibilidade estética. Cada tipo de música está em relação com um certo tipo de homem (diz Handschin) que ela reflete e para quem ela se dirige. Desse modo, só poderíamos compreender uma música do passado tornando-nos esse homem do passado que a criou e para quem ela foi criada. Na realidade, só podemos saborear a música antiga com a nossa sensibilidade de homens atuais. Mesmo se a música antiga seja exatamente reconstituída em sua realidade acústica, que ela soe acusticamente como outrora, ela soará emocionalmente de maneira diferente para nós. Ainda há discos (devem ser os mais antigos que existem atualmente) de peças para piano de Grieg tocadas pelo compositor. Seu estilo nos parece hoje ridículo em sua afetação e o efeito que Grieg queria obter conjuntamente com sua música e a maneira de interpretá-la, é completamente desvirtuada. Desse modo uma reconstituição exata do fato sonoro não é uma restituição do fato musical, porque este é antes de tudo um fato humano, porque a obra musical, para existir, quer ser recebida por um ouvinte que lhe corresponda, ouvinte que ela pressupõe mas que não poderia ser ressuscitado unicamente pelos conhecimentos históricos. Pois se a ciência pode nos ensinar quem era o homem do passado, de acordo com tal música do passado, como poderia ela nos tornar esse homem do passado e nos despojar de nossa sensibilidade estética de homens atuais?
Devemos distinguir claramente, na execução da música antiga, duas tendências fundamentais: uma preocupada com a exatidão histórica, outra com a fidelidade em relação à obra e em relação às exigências do homem atual; uma seria experimental e científica e se limitaria rigorosamente ao que está historicamente estabelecido (e não seria surpresa que ela possa nos parecer esteticamente absurda) a outra seria essencialmente estética e seu ideal seria estabelecer um contato entre tal música do passado e a sensibilidade estética do homem atual, de criar, por algum desvio ou artifício, uma relação entre ela e nós que fosse análoga àquela que ela tinha com o homem de então.
A "reconstituição histórica" no sentido de "restabelecimento de um fato" não poderia ser a meta da ciência musicológica pois esta não pode se impor como norma à estética e ao sentimento estético. O musicólogo não tem o direito de exigir do intérprete que ele se conforme, na execução da música antiga, com os dados da história musical. Certamente, o executante não deve ignorar esses dados, mas é sobre seu sentimento musical que ele deve finalmente se basear para construir uma execução moderna e nova utilizando livremente os dados históricos. Pode acontecer aliás, que seu sentimento musical o faça descobrir de imediato e com a maior precisão, o universo espiritual da obra, e por outro lado, se ele não compreender esse universo espiritual em si mesmo, os dados históricos de nada lhe servirão.
Entretanto, se as execução da música antiga não é reconstituição histórica, ela também não deve ser abandonada à livre vontade do intérprete, e este tem o dever de encontrar um meio termo entre a verdade histórica e a fantasia excessivamente desrespeitosa. Verdade histórica e verdade estética devem encontrar seu secreto ponto de convergência e se unirem definitivamente.
Além disso, (diz Handschin), mesmo se a verdade histórica fosse a lei suprema que regulasse a execução musical, deveríamos lembrar dessa latitude e liberdade que a época antiga deixava ao executante e que dizia respeito não apenas às nuances mas também à ornamentação de uma linha melódica e mesmo, indo mais além no passado, à instrumentação. O compositor entregava ao executante uma obra de tal modo que este pudesse terminá-la e assim adaptá-la. E nossos escrúpulos históricos, eles mesmos fato histórico e criação do século XIX, surpreenderiam bastante o compositor antigo e certamente iriam contra seus desejos. Por outro lado não devemos esquecer o papel criador que um outro gênero de adaptação — muito admitido — a transcrição da obra de um compositor por um outro compositor, desempenhou na história da música.
A maneira pela qual nossos contemporâneos colocam o problema da interpretação, sua firme crença que esse problema é antes de tudo o do respeito ao texto e à verdade histórica, são na realidade uma conseqüência não apenas do "historismo" da nossa época, mas também da própria história da música e da interpretação musical.
Durante o primeiro classicismo, ainda não havia a questão do respeito ao texto e à verdade histórica. Por um lado, reinava nas obras musicais um estilo universal e os intérpretes só tocavam a música contemporânea; por outro lado, o "desejo de indeterminação" do compositor se manifestava sem ambigüidade sobre uma partitura avara de indicações e que parecia admitir e mesmo exigir a liberdade de interpretação, obrigar o intérprete a colaborar com o compositor por uma invenção pessoal. Mas em seguida, a medida que se avançava para o romantismo, eis que o estilo musical, cada vez mais dócil à expressão dos estados de alma, se individualizava e se fragmentava numa multiplicidade de idiomas de acordo com as personalidades e as sensibilidades dos diversos músicos que os criavam. Não era de surpreender que estes procurassem indicar em detalhes a interpretação que desejavam, fazer com que os intérpretes compreendessem sua linguagem, os estados de alma que a obra expressava e que lhe davam seu sentido e seu conteúdo. Por fim, no período moderno, os executantes tocam as músicas mais diversas e devem poder se adaptar à todos os estilos do passado; desse modo têm como problema o respeito ao texto e à verdade histórica. Além disso, em reação ao romantismo, a música e a interpretação musical contemporânea se orientaram para um estilo objetivo e impessoal, incisivo e rigoroso, desdenhando as fantasias, os abandonos e os lânguidos devaneios da subjetividade; de modo que às prescrições exatas dos compositores, que nada querem deixar à liberdade e à sensibilidade dos intérpretes, responde o desejo destes em respeitar a obra objetiva do compositor e de não deformá-la acrescentando nela algo deles mesmos.Esse objetivismo da música e da interpretação moderna está em pleno acordo com o historismo reinante, que livra o intérprete de qualquer preocupação de invenção pessoal e lhe propõe como ideal uma interpretação "objetiva e histórica".
O historismo, que nasceu no século XIX, quis, além do restabelecimento dos textos musicais antigos, a restituição acústica da música antiga, especialmente pela reposição em uso dos instrumentos antigos. E certamente é excelente que estes sejam ressuscitados, pois a música antiga está em acordo com suas particularidades e estas podem esclarecê-la. Mas seria absurdo pretender que a música antiga tenha que ser, obrigatoriamente, tocada sobre instrumentos antigos ou imitados dos antigos. Aqui ainda devemos distinguir o experimental do estético. Pois, querendo ou não, os instrumentos modernos é que são os nossos e na medida em que nós somos homens da nossa época, engajados na realidade presente, esse fato só pode ser uma vantagem; pois é em sua perspectiva estética e técnica que nossa percepção da música se forma. É inútil tentar ouvir uma obra como seus contemporâneos a ouviam: mesmo se a execução exata da época nos fosse restituída, nós só a ouviríamos segundo nós; a obra real para nós, não é mais a obra original, e sim uma obra "transcrita". O piano tendo substituído para nós o cravo, a obra primitivamente destinada ao cravo nos aparece ao mesmo tempo mais acessível e viva quando a ouvimos ao piano. Se aliás, por um escrúpulo histórico, só quisermos ouví-la no cravo, perceberemos de maneira clara a impossibilidade da reconstituição histórica em fazer revivê-la para nós a obra original: o que nos agrada no cravo é o que podemos chamar sua "cor local", o que sua sonoridade tem para nós de estranho, estrangeira à nós mesmos, seu poder invocador, nascido justamente da impossibilidade em que estamos de ouví-la como a ouviam seus contemporâneos. Desse modo, o que é materialmente semelhante se torna espiritualmente diferente pela própria diferença das épocas. E o historismo se contradiz ao pretender que uma música exatamente restituída possa nos satisfazer. Já que o homem do passado não pode ressuscitar em nós, é inútil que o executante tente tocar as obras do passado como elas eram tocadas na época e sobre instrumentos para os quais elas foram escritas. Essa reconstrução histórica apresenta certamente um interesse científico, mas não artístico: pois do ponto de vista musical, essa pretensa fidelidade é a mais perigosa das traições. De que serve que a música do passado seja restaurada materialmente se ela não o pode ser espiritualmente?
E querer reconstruí-la tal como foi, longe de salvá-la, é perdê-la definitivamente, aprisioná-la ao passado proibindo-a de se ajustar à sensibilidade estética dos homens atuais. A obra musical atravessando os séculos não permanece inalterada. Ela participa do porvir vivo da evolução que a leva para além da época do seu nascimento. A grande superioridade da obra musical sobre as outras obras de arte, é a de nunca se encarnar definitivamente, de permanecer sempre rica de possibilidades, à espera de encarnações sempre renovadas que lhe permitem reviver indefinidamente.
Essa capacidade de adaptação é a prova maior de sua vitalidade. Pois a mudança das épocas liberta a essência da obra da limitação de cada perspectiva particular permitindo-lhe assim realizar ao longo das épocas e na diversidade das perspectivas toda a riqueza de suas possibilidades.
2 comentários:
Muito bom o seu blog Maestro Martinez! Parabéns, abraços Roger Burmester
Excelente texto Maestro. Espero outros artigos
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